Salutar nostalgia
Sinto-me honrado em poder pela segunda vez homenagear, embora de maneira tão pobre um homem, um sacerdote de tamanha magnitude sabendo, pois, que há pessoas mais indicadas do que eu para tal ação. Peço desde já desculpas, quando minhas palavras não forem suficientes para expressar quem foi José Edson Magalhães.
Hoje queremos lembrar com justiça também o nosso querido Romário Rios que nos deixou há 07 meses. Imensa saudade daqueles que souberam cultivar uma amizade saudável e inesquecível como a sua, amigo.
“Amar é ter um pássaro pousado no dedo. Quem tem um pássaro no dedo sabe que, a qualquer momento ele pode voar”, diz Rubem Alves.
O pensamento deste poeta cai como uma luva, se encaixa, emoldura exatamente o instante em que soubemos da abrupta partida sem despedida do padre Edson, há um ano completado hoje.
O pássaro que estava no dedo de Deus, inesperadamente, voou do dedo para o coração, do dedo para o coração de Deus. Sendo assim poderíamos cantar com o salmo 131: minha alma retorna a tua paz, como criança bem tranqüila no regaço acolhedor de sua mãe como canta Kelly Patrícia.
O pássaro voou naquela manhã, surpreendente, traiçoeira, de segunda-feira da Semana Santa. Coincidência ou acaso, eu ouvia pela manhã, ao acordar, a música Canção da América. Por achá-la rebuscada decidi escutá-la pela segunda vez. Era uma canção insistente para celebrar a amizade. A letra desta música é bastante utilizada nos momentos de despedida, e com padre Edson não foi diferente. Ao chegarmos à funerária, padre Denilson e eu, nos deparamos com seu corpo inerte trajando uma camisa simples com o trecho da referida canção – falava de amizade. Coincidência ou não, interpretei a repetição daquela melodia, que para mim é um bálsamo, como aviso suave do pássaro que voava de volta para o lugar de onde um dia partiu em direção a seara do Senhor.
Padre Edson era este pássaro de cocoruto grisalho que soube ao longo da experiência terrena fazer vôos rasantes, pois era muito sonhador, mas sem tirar os pés do chão.
Este pássaro amigo fizera inúmeras amizades com crianças, jovens, adultos e pessoas da sua idade.
Na capela de São Benedito, no último domingo de sua vida, a me ver amarrando o cíngulo à cintura, comentou com frei Domingos que veio nos auxiliar nas cerimônias e confissões da Semana Santa: “padre novo... se preocupa com os paramentos...” e dizia como havia feito no dia da sua ordenação sacerdotal, e não se contentando fez uso do microfone para tratar do assunto. Achei inoportuno aquele comentário para o momento – era domingo de Ramos.
Algum tempo depois, perdido no meio das minhas recordações, pude resgatar também as lembranças e desabafos do padre Edson e, paulatinamente, fui compreendendo a despedida inconsciente do pássaro que já ameaçava alçar vôo.
Ele esteve quarenta e cinco anos pousando no dedo da Igreja de Acaraú. Nos acostumamos com ele, com sua timidez no altar. Por causa da sua consciência lúcida e atualizada jamais, seus paroquianos, pensavam na hora que o pássaro levantaria vôo para outras paragens. Foi embora, migrou para o desconhecido, mundo invisível, eterna morada almejada por todos. Encerrou uma jornada inédita, pois somente os que se gastam pela causa do Reino de Deus, e estes são raros, é que podem desfrutar de um tirocínio extraordinário tal como fizera o pássaro de cocoruto grisalho.
Particularmente, já o conheci assim de cabelos esbranquiçados pelo tempo, pelos cargos, compromissos e preocupações escondidas naquele coração que parou de funcionar no dia vinte e nove de março de dois mil e dez.
Há um ditado pejorativo que diz: “quem quer ser bom... morra”. Ao padre Edson este adágio não se aplica. A partida brusca sem despedida arrancou do coração de muitos paroquianos a lamentação. O retorno para Deus fez nascer na consciência das pessoas a missão inigualável, sublime de um sacerdócio discreto. Paradoxalmente muitos o conheceram após sua partida.
Alguns bairros de nossa cidade ganharam nome e cresceram com a motivação de padre Edson, destacamos aqui Mons. Sabino, Sítio Buriti e Bailarina. Nas quadras invernosas pesadas, ele foi o principal incentivador do desbravamento destes lugares. Os moradores de Perseguida, por exemplo, foram convidados a morar em região mais segura. Eu mesmo sou testemunha dos gêneros arrecadados na garagem de sua residência para assistência dos desprovidos nos tempos de enchente.
Quantas pessoas foram socorridas pela mediação de padre Edson, com remédios e indicação para emprego no município, independentemente de serem católicas.
Ao assistir o sofrimento das pessoas sem recursos para um bom atendimento de saúde, junto ao Lions Clube de Acaraú, empreendeu a construção da fundação SESP que atualmente recebe, merecidamente, o nome de Dr. Nestor de Paulo.
Há que se falar aqui também do projeto de cacimbas comunitárias que amenizou o sofrimento de inúmeras famílias sem água.
Apresentou ao secretário de segurança do Estado o projeto de um presídio modelo com terapia ocupacional para os detentos. Infelizmente, padre Edson ouviu da boca do secretário que o estado não tinha condições para manter um presídio daquele porte no interior.
Durante seu pastoreio construiu centros de evangelização em várias comunidades. Existentes ainda hoje, acolhem os encontros de catequese e outras atividades da paróquia. Alguns estão sendo adaptados para capela.
Na grande reforma da igreja matriz criou a escola de aprendizes com oficinas de carpintaria, construção civil e outros ofícios.
Não nos compete elencar em detalhes os feitos de padre Edson para o desenvolvimento do Acaraú. O importante é viver segundo o princípio do Evangelho de dar com a mão direita para que a esquerda não veja. Ele soube agir desinteressadamente, livre como um pássaro desprendido e abandonado na confiança de Deus.
Homem de idéias firmes, pensamento ponderado. Com capacidade de análise. Era formado em Letras e sabia escrever com mãos de poeta. Sou conhecedor de um dos seus devaneios artísticos – uma homenagem ao amigo coqueiro que existia no fundo do quintal do casarão como ele se reporta ao falar da casa paroquial.
Trata-se de uma belíssima crônica do solitário sacerdote e a companhia do amigo coqueiro. Datado de julho de mil novecentos e noventa e dois, o texto rebuscado encontra-se emoldurado na sala superior da casa que lhe abrigou de 1965 a 1998.
Já na nova residência, por diversas vezes, me surpreendia vê-lo perdido entre os livros. Era um sacerdote atualizado, lúcido, amava a Igreja que o gerou para um apostolado fecundo. Depois das leituras, a escrita de maneira lenta, como sabemos.
Ao longo de seu ministério apascentou somente dois rebanhos – o de Cruz e o de Acaraú. É verdade que foi convidado algumas vezes para assumir outras funções, como por exemplo, a reitoria do Seminário Arquidiocesano, em Fortaleza. Padre Edson havia fixado as raízes no seu torrão-natal, consumia-se de zelo pela paróquia. Dos muitos templos da Igreja do Ceará, a nossa matriz é um dos ícones sagrados mais suntuosos e imponentes. Ele não queria mexer na arquitetura de Agostinho Balme. Alguém sugeria: a igreja precisa de banheiro... de armários... é preciso trocar o carro.... Ele dizia: “o padre que vier cuidará disso”.
Todos os anos, ao que me parece desde a década de 70, padre Edson oficialmente abria as festas de Nossa Senhora da Conceição com uma mensagem, um apanhado dos últimos acontecimentos da vida social e da Igreja local. O último discurso, embora ele não tenha mencionado, trazia como título – Antes de parar. Nos últimos tempos falava muito com ar de despedida, o que era natural para um homem trabalhador, dono de muitas responsabilidades paroquiais e pessoas, além disso, era necessário cuidar do coração. Protelou por algumas vezes a ida ao cardiologista alegando os serviços pastorais da Diocese e da paróquia. Como sabemos, ele foi Coordenador de pastoral da Diocese por várias vezes e coordenador da Região Pastoral Vale do Acaraú por longa data.
Em janeiro de 2009 deveria ir ao médico. Não foi. Aguardava a minha chegada de Pernambuco para não deixar a paróquia desassistida. Resolveu prorrogar os exames, os quais faria após a semana santa. Mas, retomando ao tema - Antes de parar- padre Edson assim se expressava: “a fila anda”, para dizer se referindo a uma canção do Daniel a respeito do eterno convite da vida. Há um caminho para ser percorrido, ainda há trabalho a ser feito, os sonhos se eternizam.
Podemos afirmar que padre Edson partiu gastando-se até o fim, parafraseando João Paulo II, pela causa do Reino de Deus.
Deixou rastro, lembranças, opinião, palavras, gestos, marcas, testemunho, dedicação, serviço, saudades. Sua lembrança ficará impregnada na consciência dos que souberam amá-lo e no interior desta igreja. Basta contemplar o altar para lembramos daquele olhar de lado, as mãos no bolso da calça comprida, o cuidado em pentear os cabelos, o casaco azul, gestos tão peculiares a sua pessoa.
Evidentemente tais palavras são muito desprovidas para expressar, nesta celebração, não da tristeza, mas da saudade, tudo que significa para nós (familiares, amigos, conterrâneos, aprendizes, ex-alunos, afilhados, paroquianos) o padre José Edson Magalhães.
Ao concluir gostaria mais uma vez de tomar emprestadas as palavras doutro poeta, desta vez, Mário Quintana: “não vamos chorar por que acabou, vamos sorrir por que aconteceu”. Padre Edson já fez sua páscoa, está com Deus. O importante é nos esforçamos para dar continuidade aos trabalhos começados por ele. É a melhor maneira de homenageá-lo, lançar a semente. Assim é a vida: uns plantam outros colhem.
Pe. Robson Cabral
Acaraú, 29 de março de 2011 (IIIª semana da Quaresma)